Girl From Sao Paulo

"you are crossing the tropic of capricorn".

12 March 2011

a alma do ti bento mendonça




Estavamos a porta da adolescencia, mas ainda crianças o suficiente para não usar a parte de cima do bikini, e andar descalças pelas ruas.
Era fim dos anos 70, alto verão, e como era costume, tinhamos acabado de chegar a casa dos avós, numa aldeia perdida algures no Alentejo. Os nossos irmãos mais novos estavam como sempre agarrados as mães em algum canto do mundo, e nós duas sozinhas tinhamos sobrevivido uma angustiante espera até chegar o dia de viajar.
Nossos avós viviam do campo. Tinham 6 filhos, um monte de netos, e todas as pessoas da aldeia eram primos, tios ou amigos. A aldeia tinha umas 500 pessoas no máximo, acho que estou até exagerando.
E para a Rosa e eu, essas férias eram a materialização de liberdade.
Não tinhamos horário para acordar, ninguem nos pedia nada, por morarmos na capital eramos o centro das atenções com os primos e os amigos mais velhos. Eu era a mais nova, e andava atras da Rosa como uma sombra, até quando ela as vezes preferia que eu ficasse para tras, para ela poder ser “mais velha”. Eu seguia-a para o bailinho na cooperativa, iamos até o café da sociedade, e eu sabia que do topo dos seus 14 anos, eles falavam em codigo como unica maneira de me excluir. Mas aos 10 anos, eu me sentia a menina mais madura do mundo, em parte por eles não terem me expulsado do grupo.
Uma noite e estavamos a caminho de casa, e eles combinavam alguma aventura, porque era para eu acordar muito cedo com o cantar dos galos, e por isso teria de dormir cedo tambem. E lá fui.
Acordei com a Rosa a abanar-me na cama. Levantei-me com cuidado para ninguem ouvir, enfiei o vestido, e as sandálias e saimos. Os primos já estavam na frente da casa a espera e como ainda estava escuro, por um minuto pensei que ainda fosse ontem á noite, mas logo os galos continuavam a cantar e os cavalos a relinchar.
Andamos quietos até sair de perto das casas, e o Chico perguntou a Rosa se não seria melhor eu ficar para tras, por ser muito pequena, mas ela disse que se eu não fosse ela tambem não ia.
Fomos até ao alto da colina e de lá vimos a aldeia inteira, com a torre da igreja a despontar no centro. Atras da igreja já a luz do sol espreitava, pintando o céu com pequenas riscas de magenta e dourado. O céu continuava salpicado de estrelas, e a lua ainda estava a postos.
O Chico e o Manuel tiraram os cigarros do bolso e passaram os maços entre todos. Cada um pegou o seu cigarro e o acendeu com fósforos. Eu peguei o meu, fingi que o acendi, e fiquei a segurá-lo entre os dedos.
“Trouxeste a fisga?” perguntou o Chico. Enfiei a mão na gola do vestido e mostrei a fisga pendurada no pescoço, contente.
(fisga é estilingue)
Chegamos a beira do cemitério, o Chico apontou a fisga dele para um pinheiro, e plop, caiu um pardal. Ele pegou o passarinho no chão e enfiou-o no bolso. Pegou a fisga de novo e outro pardal caiu. O Zé, a Rosa, todos começaram a apontar as fisgas e eu saquei a minha, peguei umas pedrinhas no chão e tentei, mas só consegui acertar folhas. Andamos uma meia hora em silêncio ao longo do muro do cemitério, e cada um já carregava seu quinhão de passarinho.
Eu nunca tinha ido a caça com eles, mas já tinha participado do festim que o seguia, onde se depenavam os pardais, e se deixavam a marinar com sal, alho, colorau, louro e vinho branco. Ao fim do dia, a Antonia fritava os passarinhos e comiamos a carne crocante com pão.
Todos tinhamos escutado as histórias animadas de nossos pais e tios que caçavam perdiz, codorna e faisão com espingarda. Um dia, o Chico, o Zé e o Manuel iriam caçar com eles, mas as moças não caçavam nunca. Por isso estávamos tão envolvidas nesta grande caça de fisga.
O Chico tentou escalar o muro para subir na arvore e alcançar o ninho lá no meio da copa, mas como era grande e pesado desceu, olhou para mim e fez-m um sinal para eu chegar perto. “Sobes nos meus ombros, pulas ali no tronco e vais a deslizar até a parte grossa do tronco. Pegas os ovos com cuidado pra não partirem e deixas o ninho lá. Depois deslizas pra tras, das-me os ovos e pegas lá os outros no galho arriba, percebestes”. Eu prestei atenção e o meu coração disparou, com o peso da responsabilidade. Estava a morrer de medo, mas se eu me recusasse agora, nunca mais me levavam, então engoli em seco e subi nos ombros do meu primo.
Ao deslizar, senti a resina do pinheiro colar a minha pele e sabia que aquilo ia dar um trabalho para tirar. Estiquei-me um pouco e cheguei ao ninho. Peguei os ovinhos que embrulhei na saia do meu vestido e comecei a deslizar para tras. Entreguei os ovos para eles, e o Chico assobiou “boa Paulinha! agora vai lá e pega os outros” e naquele momento, pendurada no galho de pinheiro manso eu senti que o mundo era meu.
Eu era util.
Fazia parte do grupo dos grandes.
Podia caçar.
Fiz mais duas viajens e quando voltei, o Chico esperava por mim, e deslizei para sentar nos ombros dele. Em vez de me levar ao chão ele deixou-me lá nos ombros e continuamos todos a andar, comigo agora a ver tudo de cima. Andar nos ombros dos meus primos mais velhos era o que eu mais gostava, mas um previlégio que já tinha perdido, com a chegada dos 10 anos.
A Rosa passou o cantil pro Chico e ele bebeu e passou-o para mim. Eu bebi um pouco de agua em fio, sem tocar no bico e sem deixar a agua escorrer para fora.
Sucesso total.
Estava pronta para ser adolescente.
Chegamos ao outro canto do cemitério e animada falei “Chico, queres que eu pegue aqueles ali?” e ele levou-me logo a beira do sobreiro. Já dava para ver uns ninhos.
Subi no tronco e comecei a deslizar animada, mas de repente perdi o equlibrio e escorreguei. Fiquei precáriamente pendurada num galho que ameaçava me despejar em cima da familia Mendonça. Apavorada, gritei, mas o galho cedeu e de repente lá estava eu deitada numa pedra gelada, ao lado de flores murchas, em cima do ti Bento. O ti Bento - aquele sem dentes, velho, morto, velado na igreja uma semana antes, e enterrado em baixo duma laje de mármore branca com um anjinho em cima.
Ele ia me pegar.
Comecei a gritar e depois percebi que se eu me levantasse rapido, antes da alma do ti Bento acordar para me agarrar, eu ainda conseguia correr até o portão do cemitério. O tempo era crucial, sem pensar muito e sem perder o fôlego disparei a correr e em segundos estava com os meus 10 dedos colados em volta das barras verticais do portão de ferro. Os meus primos todos já tinham corrido até lá e estavam no lado de fora, a segurar o riso.
Que maus!
“Paulinha, magoaste-te?” E eu desmontei da pose de madura e desatei a chorar. De repente sentia-me cansada por não ter dormido bem, por ter saido sem contar a avó, do stress de matar passarinhos, de tentar ser mais velha, tinha saudades da minha mãe, as pernas estavam lambuzadas de resina peganhenta e ainda por cima morria de medo de olhar para tras, e ver que a alma do ti Bento estava quase a chegar ao portão.
A Rosa segurou a minha mão, mas eu não conseguia parar de soluçar.
Eles estavam todos ali perto do outro lado do portão e entre risos crueis, enfiavam as mãos para dentro para me acalmar, mas o unico problema era que o portão era trancado com um cadeado enorme desde que alguns mausoleus tinham sido vandalizados. Quem tinha a unica chave era o padre. E o padre estava em outra aldeia para um baptizado, só voltava no fim de semana.

Ai ai ai.

Os soluços viraram berros.
“Shhh, vais acordar a aldeia inteira” dizia o Zé.
“A gente não havia de a ter trazido” dizia o Manuel.
“Cala-te, parvo” dizia a Rosa.
O Chico saiu a correr e a Rosa deu-me um pouco de agua do cantil, mas desta vez eu não consegui beber direito e lambuzei-me toda, e a agua misturada com lagrimas escorria pelo meu pescoço e molhou o vestido todo.
Fiquei com os olhos fechados, a rezar uma mistura de Ave Maria com pedaços de Pai Nosso no meio porque a aflição era tanta que eu esquecia em que ponto estava, entre soluços e suspiros e repetia - mas o que importava era que Deus soubesse que eu estava a rezar.
Ouvi o Chico voltar, e quando abri os olhos ele já tinha jogado uma corda e saltado para o meu lado do portão. Jogou-me nas costas a cavalinho, e eu agarrei-me a ele com braços e pernas e subimos o portão até a liberdade e a VIDA.
Deixei-os lá parados e corri para casa sem olhar para tras, tirei o vestido e enfiei-me na cama.
Quando acordei, fiquei um tempo a pensar se tinha sonhado com aquilo tudo.
Só podia ser.
A Rosa não estava na cama, a Antonia já estava a fazer o café, havia o cheiro de bolo de azeite.
Levantei-me, lavei a cara no lavatório e fui até a cozinha.
Já era de dia.
“Oh dorminhoca, tás com fome?” perguntou a Antonia.
Peguei a tigela de migas de café com leite que ela me deu, olhei para o relógio de cuco, e vi já eram 9:00hs.
E foi então que senti a resina melequenta na perna.

Respirei fundo aliviada.

A alma do ti Bento não me pegou desta vez.