Girl From Sao Paulo

"you are crossing the tropic of capricorn".

19 June 2010

A mulher de NY, a garota de Cascais e o Saramago

Quando eu fui morar em NY, conheci uma mulher incrivel chamada Risa que me apresentou Saramago. Desde que ela morreu em Novembro ensaio escrever sobre ela, e ontem, com a noticia da morte do Saramago tive mais um motivo.

A primeira vez que a Risa e eu nos encontramos ao vivo, ela já foi falando sobre o guisado de carne portugues que tinha comido, e me perguntou se eu podia fazer um para lhe matar a saudade. Colocou-me $5 dolares na mão para os ingredientes (o suficiente para comprar as cenouras), e eu lá fui feliz por dar algo em troca da recepção que acabara de ter. Enquanto minhas amigas dividiriam dormitorios infestados de baratas e ratos no lower east side, eu moraria na Charles Street, no coração da Greenwich Village com um casal tipicamente nova iorquino e que tinha idade para ser meus pais. Eu estudava de noite e em troca do alojamento eu seria au-pair para a fofissima Isabel, a filhinha que Risa e o maridol acabavam de adotar.

Esse tempo durou dois semestres, até eu finalmente ir dividir um studio apartment uptown com uma amiga da faculdade, mas ela ficou em mim o resto da vida.
Acompanhei a chegada de seus dois filhinhos, presenciei dois casamentos e divorcios, um cancer de mama, uma mudança de carreira e duas de apartamento. Ela por sua vez, me ajudou com muitos textos para a faculdade, segurou minha mão no pronto socorro quando tive a maior dor de cabeça do planeta mas achava que estava com meningite (era somente dor de cabeça mesmo), me deu carinho em desilusões amorosas, me ajudou a escolher o vestido de noiva, e por um tempo fez o papel de minha mãe e até de avó do meu filho. Com ela conheci pessoas incriveis e vivi experiencias de sonhos, e não é possivel imaginar-me em NY sem ela.

A Risa era advogada, e contava entre seus clients o Andy Warhol, a Ileana Sonnabend, a Susan Caldwell, a Sidney Biddle Barrows, Drenka Willen e o Leo Castelli (entre muitos muitos outros). Com ela eu visitei a Factory para tomar chá com o Andy Warhol (e virei amiga de balada do Don Munro, e do Chris Makos, assistentes de Andy), com ela fui as exposições de inauguração do Robert Mapplethorpe, do Jean Michel Basquiat, e do Kenny Scharf. Conheci o Lou Reed, o Richard Serra (escultor), o Henry Geldzahler (curador de arte moderna no Metropolitan) a Fran Leibowitz e Susan Sontag (escritoras), a Roberta Miller (filha do Henry Miller e desde então diretora de cinema) e a Drenka Willen, uma agente literaria genial que representava o Umberto Eco e me apresentou ao Saramago, na forma do livro Balthazar and Blimunda. Por ironias do destino, o meu primeiro livro do Saramago foi lido em ingles.
Risa me jogou no mundo da pop art, me ensinou a apreciar expressionismo abstrato, e me mostrou como era nascer judia nos estados unidos depois da Guerra e sobre a importancia de ser democrata em um pais que vivia no auge do capitalismo. Me levou ao bar do American Hotel em Sag Harbour, onde o Jackson Pollock tomava cerveja e ao White Horse Tavern para tomar cognac como o Henry James.
Quando terminei o curso na faculdade e comecei a procurar emprego no meio de cinema, ela apresentou-me as pessoas que conhecia e assim conheci um editor de comerciais de TV que me deu as dicas para eu entrar no mercado de publicidade. (Meu primeiro emprego foi como recepcionista em uma editing-house).
Cada minuto passado com ela era de uma intensidade impar. Basta imaginar como foi isso para uma garota recem chegada de Portugal. Durante todo o tempo que morei em NY, ela foi uma referencia e não tomava qualquer decisão sem antes falar com ela.

Estes ultimos 4 anos da minha vida foram estampados por algumas mortes que muito me abalaram.
Em 2006 foi um amigo querido, jovem demais. Depois em 2007 o meu irmão, seguido em 2008 de uma amiga da turma de NY que teve uma doença subita que lhe deu dois meses de aviso prévio, em 2009 foi meu pai de uma parada cardíaca fulminante, no final de 2009 a Risa e agora o Saramago.

Nunca conheci o Saramago, e não posso dizer que ele seja meu autor favorito, apesar de muito admirar sua obra, e de muito ter sido tocado por ela. Mas fato é que foi o maior escritor que já escreveu na lingua portuguesa, e o unico a receber o Nobel da Literatura. E fato é tambem que ele pontuou alguns momentos importantes da minha vida. Minha mãe simpatizante de comunismo admira sua visão, enquanto o meu pai catolico o detestava pelos mesmos motivos. Em 1987 em NY li sua primeira obra, por intermedio da Risa. Em 2007 já no Brasil li de novo o Ensaio Sobre a Cegueira como forma de me preparar para trabalhar no Blindness do Fernando Meirelles, para o qual a produtora onde sou sócia fez uns estudos de efeitos digitais.

Torço ardentemente para que numa dessas ironias do destino, Saramago precise admitir-se errado em relação a Deus, e que haja uma outra forma de existencia lá do outro lado. Assim a eternidade ficará mais interessante.

Divido uns textos do mestre ribatejano que muito me tocaram quando os li:

"...eram lágrimas e lamentos, A culpa foi minha, chorava ela, e era verdade, não se podia negar mas tambem é certo, se isso lhe serve de consolação, que se antes de cada ato nosso nos puséssemos a prever as consequencias dele, a pensar nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse feito parar. Os bons e maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala." de ensaio sobre a cegueira (josé saramago)

"...desceram a serra, tomaram por prúdencia outros caminhos....se não houvesse tristeza e nem miséria.... se em todo o lugar cantassem aves, a vida podia ser apenas estar sentado na erva, segurar um malmequer e não lhe arrancar as pétalas por serem já sabidas as respostas ou por serem estas de tão pouca importância, que descobri-las não valeria a vida de uma flor." de memorial do convento (josé saramago)