Girl From Sao Paulo

"you are crossing the tropic of capricorn".

23 October 2006

Santo Antonio - Conto - Cap 1, 2 e 3

Capitulo 1


Um pouco antes de chegar a hora, ela saiu com uma desculpa pronta. Se até alcançar o portão se deparasse com mais alguem da casa diria que estava a caminho da cidade para pegar absorventes. Ninguem questionaria esse tipo de compra e a sua saida teria assim toda a credibilidade necessaria para esconder os verdadeiros motivos.
Seus planos eram simples. Neste clima ela calculou uns 15 minutos para chegar no vilarejo, lá guardaria o carro no patio da igreja e depois com o jornal debaixo do braço poderia sentar-se no café onde escolheria uma mesinha perto da janela. Já sentada poderia observar o momento em que o ultimo carro se aproximaria da pontezinha de madeira, pausando antes de atravessá-la. Ela terminaria então seu cappuccino, e depois de ligar para a casa avisando que não podia almoçar por causa de alguma emergencia, ela colocaria uma nota de dez reais na mesa e sairia de volta até o carro. Se encaminharia então até o hospital e subiria ao quinto andar com o pretexto de checar a recuperação do garotinho do acidente de sexta feira. (Diario da Região: “Carro despenca penhasco abaixo, 4 adultos mortos e garoto de 5 anos é o unico sobrevivente, resistindo as 18 horas de resgate. O unico ferimento é uma fratura na tibia esquerda. A policia rodoviária acha que o acidente ocorreu durante o tornado que surpreendeu a região na ultima quinta feira. Acredita-se que o carro possa ter ficado pendurado nos troncos das arvores durante horas até a policia receber um telefonema anonimo”. Ao chegar, olharia em seus olhos e o brilho deles a levaria a se esquecer por completo do resto de sua complicada vida e a lembraria mais uma vez o que a sustentara ano após ano no curso de medicina.

Pegou as chaves do carro e saiu. No portão encontrou o caseiro que lhe contou que todos estavam andando a cavalo e que a Maria ia servir o almoço as 14hs. Manu olhou o relogio. 13:40hs. Entrou no carro e esperou enquanto Jonas abria o portão para ela sair. Manu esticou a cabeça pra fora do carro e avisou que estaria na cidade, para não a esperarem. Saiu.

O sol estava escondido há dias, dando ao lugar um ar cinza de velha europa. Manu sentia uma melancolia como um chamado, algo no seu dna que lhe dava a chance de sentir com uma profundidade coisas que tinha certeza a muitos passavam desapercebidas. O cintilar do orvalho nas folhas de eucalipto, o cantar do bem te vi, o susurrar da agua no riacho, o cheiro de inverno no campo. Tudo estava a flor da pele, como se algo tivesse se acendido de repente dentro dela.
Quando se sentia assim, preferia ficar a sós, sem ter muito a explicar para ninguem. Os amigos continuavam a se juntar todo final de semana tentando obrigar a vida a ser como antes. Ela tambem se esforçava para voltar ao normal, mas no fundo sabia que isso não era possivel. Dois anos tinham se passado mas parecia que a vida estava suspensa. Desde o dia em que o telefonema marcou, como uma haste de bandeira marca o topo de uma escalada, a passagem de uma realidade a outra.
“Dra. Manuela Almeida?”
“Sou eu”
“O que a Doutora é de um Luiz Miguel Almeida?”

Sempre que se distraia, se lhe baixava a guarda e voltavam essas palavras a lhe dançar na mente. Como uma tela de computador que automaticamente começa a exibir fotos depois de uns minutos sem uso. O toque do telefone desencadeia o dialogo que desencadeia a lembrança que desencadeia a experiencia fisica.
Com o tempo, Manu percebeu que se descobria cada vez mais cedo a mergulhar nessa memoria e aprendeu a se organizar para desviar os pensamentos. Aprendeu a travar a lembrança na frase anterior; o machado descia em camera lenta mas não chegava ao final da trajetória. Manu dominava a memoria para não escutar a voz suave e paternal do estranho …”o que a doutora é de um Luiz Miguel Almeida?”... e em vez disso, escutava as pedras soltas sob os pneus, o salpicar da chuva no vidro do carro, a dança das flores nas arvores multiplicando o vento.

A estrada estava vazia.
Terminou a alta temporada e os turistas partiram em busca de novos assuntos e experiencias. Este lugar que anonimamente a acolhera dois anos antes era agora de novo seu: seu pinhal, seu policia, suas ruas desertas, seu bombeiro, seu hospital, sua cantina e supermercado.
Olhou o relogio e viu que eram 13:55 No relogio do carro ainda eram12:55, por causa de um fuso horário que eventualmente retornaria.
Manu percebeu uns farois cortando a neblina e firmou seu olhar no horizonte. Era o Pedro. Vinha para almoçar, para lhe cantar parabens, para participar da força tarefa montada pelo exercito de amigos inconformados com perdas e choros. Calculou o momento em que o carro de Pedro cruzasse o seu para coincidir com uma virada de seu rosto para o lado oposto, evitando assim que ele soubesse que ela o vira passar. Os carros se passaram e Pedro buzinou freando, mas Manu seguiu em frente como se nada tivesse visto ou escutado. Ao passar a esquina decidiu pisar um pouco mais forte no acelerador. Quanto mais cedo chegasse, mais cedo fugiria. No final da reta, apareceram as primeiras casinhas. Manu olhou o espelho retorvisor mas não viu ninguem. Virou a esquina para a rua da igreja e contornou a praça para chegar no pateo dos fundos. Procurou uma vaga e estacionou o carro. Assim que trancou a porta por fora do seu carro viu o vulto do carro do Pedro dobrando a esquina de tras. Confusa pelo coração disparado pensou em entrar no carro rapidamente mas viu que não teria tempo de sair, ele contornaria a praça antes dela sair do pateo, desta vez sem chance de anonimato. Manu olhou em volta. O ponto de fuga mais proximo era a porta lateral da sacristia, que ela esperava que estivesse destrancada. Decidiu arriscar e saiu correndo. A porta abriu e ela entrou enquanto pelo canto do olho esquerdo percebeu Pedro entrando pelo portão do pateo.

Nos primeiros segundos depois de entrar na igreja, seus olhos ficaram cegos pela escuridão, como depois de um flash de foto. Ela esperou um momento até o nervo otico se habituar, enquanto sentia o cheiro de parafina e insenso envolvê-la e a acolher. O ruido de suas botas no mármore era o unico sinal de vida e ela foi caminhando até ao altar. Lembrou-se que quis mudar para cá por causa das lembranças que agora subitamente lhe invadiam o peito, sua avó e mãe caminhando com ela de mãos dadas para acender uma vela a São Bosco. Lembrou-se de rezar ao lado delas. Lembrou-se da primeira comunhão, e depois da festa onde dançou com seu avô, empoleirada em cima de seus sapatos enquanto ele dançava pelos dois. Lembrou-se de quando ele disse que sempre estariam juntos. Manu sentiu um clarão de luz invadindo a penumbra da igreja. Se fosse o Pedro, ela teria uns segundos até ele se acostumar com a escuridão. Num impulso correu para o unico esconderijo possivel: o confessionário. Sentou-se e correu a cortina de veludo.



Capitulo 2



Depois das explicações iniciais da Maria, o almoço foi servido pontualmente as 14:00hs. Em Santo Antonio o almoço era sempre aquela comida aconchegante de fazenda feito com vagar no fogão de lenha. Maria prometeu a todos que Manuela teria seu bolo de aniversário favorito com vela e parabens no jantar. O olho piscando na palavra vela, porque se brincava muito sobre idade já que Manu entrava hoje nos 35 anos. E com todos almoçando em volta da mesa, logo o tom jovial e brincalhão tipico desse grupo se instaurou. Ana contava as ultimas da campanha que criavam na agencia de publicidade. Sofia assegurava todos que a sua irmã Manuela estava bem, e contava alguns casos do seu trabalho. Marcos estava dando um tempo (de novo) da Antonia.
Maria tinha visto a Manuela nascer, tinha sido parceira da familia desde o começo e seu carinho e devoção eram evidentes todos os dias, na seleção e preparo das comidas, na forma como recebia na casa todos os amigos de tantos anos, na forma como lembrava detalhes de cada um. Sua participação era intuitiva, sempre na retaguarda observando até aparecer na hora certa com sua opinião ou comentário succinto. Para o observador alheio, era a empregada dos sonhos. Para a Manuela, Maria era a mãe que continuou com ela e A Sofia e as criou e amou depois de as ver crianças sem pai ou mãe.
O grupo agora de novo conseguia relaxar e expressar alegria. Já não ficavam tão preocupados com as idas de Manu ao hospital. Marcos brincava que ela era a unica médica que se colocava em plantão cativo. Juliana tinha sugerido que era por causa do Luiz Miguel, e todos concordaram aliviados por verem uma causa. Mas hoje em dia Pedro não estava mais tão certo. A medicina tinha se tornado para ela uma obsessão. Era uma fuga para a ciencia, um lugar onde as respostas apareciam na lámina do microscopio, no monitor cardíaco, no raio x.

Logo depois do acidente, qualquer encontro entre alguem do grupo era dificil de organizar e insuportável de sobreviver. A falta do Luiz obrigava a ausencia emocional da Manu que levava todos a um estado constante de alerta. Se inspiravam nela para avaliar seus sentimentos, para classificar a situação, em relação a tudo. O noticia do acidente grave veio com uma forte ameaça de morte, e os primeiros dois dias de UTI foram uma avalanche de informações e sentimentos. Parecia que estavam todos em uma outra sintonia.
Pedro acordava de manhã e nos primeiros momentos antes de sua mente estar totalmente consciente, entre o estado de sono e o desperto, ele se lembrava da tragédia como um sonho, e se sentia aliviado por estar acordando do pesadelo. Mas esse alivio durava o tempo de acordar por inteiro. Luiz saiu da UTI e foi para uma sala de observação e eles celebraram. E se nesse começo o Luiz Miguel era o amigo querido que tinha sobrevivido a morte e se encontrava em estado de temporário repouso, logo tiveram de abraçar a realidade e aceitar que o coma era irreversivel. Assim diziam os medicos, professores nas faculdades de medicina. Assim dizia serena a Manu. Era ela quem trazia as explicações clinicas que sempre couberam ao Luiz. Ela explicava a condição de coma de forma objetiva e clara e evitava entregar conclusões.
Irreversível significa que não tem verso, sem volta. A palavra fora usada pela primeira vez por um atendente que cuidou do caso nos primeiros dias. Todos escutaram e entenderam, mas ninguem ousou repeti-la com receio de ela se confirmar real. Mas um coma não é morte. Haviam relatos de pessoas que acordavam de coma, e para quem olhava impotente o amigo mais querido deitado em uma cama de cuidados intensivos, plugado a vida eletronicamente esses eram os unicos relatos que importavam.
Coma não é morte. E repetiam esse lema como um mantra.

Um dia já passado um mês, Ana ligou para o Pedro eufórica com a notícia que lera sobre um paciente nos estados unidos que tinha acordado de um coma, assustado e confuso, depois de 12 anos. A esperança correu solta, as visitas ao hospital ganharam frequencia. Começou um movimento de pesquisas no google, consultas com especialistas e vigíla ao lado do Luiz. Mas ele continuava imovel, ausente e sem registrar qualquer reação aos estímulos que lhe impunham. Em alguns dias, percebendo que as coisas não mudariam, a rotina voltou ao normal.
A mudança de Manu para a casa dos avós assustou a todos no começo, e foi quando eles se organizaram para passar finais de semana em Santo Antonio em vez da praia que frequentavam há anos. Ela pediu transferencia para o hospital local onde foi recebida calorosamente. Luiz veio de helicoptero uns dias depois.

No inicio acharam que a constância dela no trabalho era uma forma de acompanhar o Luiz. Os encargos e horários de medicos já são tão extenuantes porque alguem ficaria todas aquelas horas a mais? Mas no fundo Pedro sabia que não era esse o motivo. Ela passava 15 minutos no quarto do Luiz e 15 horas intensamente preenchidas no pronto Socorro onde as pessoas lhe traziam desde resfriados a surtos de epilepsia. A todos ela atendia com o mesmo entusiasmo e dedicação.
Uma tarde ele combinou de a pegar para irem juntos ao cinema. Ficou lá observando-a enquanto esperava e nesse dia percebeu que ela estava comprometida com essas pessoas, com aquele hospital publico de cidade pobre. Ela queria fazer a diferença, queria dar algum sentido a sua vida e de alguma forma cumprir o sonho que Luiz tinha, de fazer da medicina algo nobre. Depois de uma hora ele pensou em avisar mais uma vez que estava ali esperando, mas decidiu ficar e tentar entender o mundo particular de Manu. Duas horas depois ele tinha visitado Luiz, lido o jornal inteiro, tinham perdido o cinema, mas a fila do PS estava reduzida a 3 casos não urgentes que podiam esperar a chegada do proximo plantonista em algumas horas.

Debruçado sobre o Debussy no piano, Pedro se lembrava agora daquela noite. Os dedos corriam pelas teclas numa busca pelas notas e sua mente acelerava tentando entender. Depois do acidente, a Manu tinha sido o rochedo em que todos se apoiavam. Se ela conseguia sobreviver e levar a vida adiante, então eles tinham de seguir seu exemplo. Até ele tinha essa obrigação, ele que agora se via de repente pela metade, com algo faltando – desigual, anacronico. Ele mesmo se assustava quando olhava no espelho e via por uns segundos o seu gêmeo. De vez em quando na rua ou no hospital sentia alguem olhando e se virava para constatar que tinha sido confundido. Normalmente as pessoas percebiam e ficavam sem graça sem saber se arriscavam a pergunta, mas ele já os antecipava e explicava que o Luis estava ainda em coma. Eles respiravam aliviados por escutarem a melhor das duas terriveis possibilidades. Depois de anotar os dados do hospital, elas partiam e ele sabia que era pouco provavel que se deslocassem a duas horas de distáncia apenas para marcar presença.
Aquela tarde no pronto Socorro, esperando que ela terminasse ele de repente se sentiu observado. Tinha escutado em algum lugar uma teoria que dizia que se olharmos intensamente para uma pessoa, mesmo que ela esteja de costas, ela vai eventualmente se sentir observada e olhar. Ele se virou e viu que ela, ainda de jaleco branco e estetoscopio pendurado no pescoço o olhava encostada na ombreira da porta do consultório. Ele sorriu para ela mas ela continuou igual, como se não o estivesse olhando, como se estivesse em transe. Ele se levantou e ela de repente se adequou ao movimento dele com um sorriso.
Mas aquele olhar ficou com ele e lhe perturbava o sono.

O que ela já sabia antes de sair do hospital? Tinha-o deixado esperar tanto tempo. Será que essa espera tinha sido uma tentativa de o fazer desistir e assim evitar que ficassem a sós?
Para quem Manu olhava naquela tarde? Quem ela via? O Luiz, colega de faculdade, seu amigo e amante, seu parceiro cuja vida agora beirava a morte ou o Pedro, o sobrevivente, a versão mais fraca dessa dupla que a natureza propos que fosse identica mas não era? O Luiz era prático e o Pedro sonhador, o Luiz assertivo e o Pedro complacente, o Luiz seguira as ciencia exatas, o Pedro as artes. O bisturi de um era o violino do outro. Um interpretava laudos, o outro poesias. O Luiz dizia que era assim que eles se completavam, por serem tão diferentes.

Na hora do acidente Pedro estava no palco ao vivo com a orquestra. Dizem que os gêmeos sentem o prazer e a dor do outro por osmose. Quando ele pensava naquela hora, no momento aproximado do impacto, ele se lembrava da musica, se lembrava do violino como um pedaço de seu corpo, como uma linha direta entre sua alma e o mundo. Lembrava-se de ter sentido um calor invadindo seu peito, de sentir uma felicidade completa. Não tinha sentido qualquer dor ou medo ou tristeza. Nunca tinha tido coragem de contar isso a ninguem.
A unica vez que sentiu de novo essa sensação foi naquela noite com a Manu, depois do pronto Socorro.

No dia seguinte ela fugiu dele e desde então nunca mais se encontraram. Sempre que ele ligava ela estava ocupada. Ela não abria emails, não retornava telefonemas. O tour da orquestra passava por Santo Antonio para fazer um espetaculo no final de semana do aniversario dela. Ele quase inventou uma desculpa para não vir, mas isso seria a deixa para a turma desconfiar. E ele avisou a todos sobre o recital e sobre sua vinda. Tinham se passado tres finais de semana sem ele vir e sua ausencia começava a ser notada. Sempre tinham sido tão amigos. Durante a separação da Gabriela, ela e o Luiz tinham sido sua maior fonte de apoio. O gemeos tinham sido sempre unidos, amigos entre si e parte da mesma tribo.
O ceu estava agora azul depois da garoa da manhã, mas o ar continuava gelado. Ele gostava de dias assim com o cêu brilhante e cristalino contradizendo com o frio inesperado em um pais tropical.
Todos estavam na sala em volta da lareira num papo animado e de quando em quando alguem o chamava mas ele se desculpava com a musica. A Manu não tinha chegado, ainda estava no hospital. Quando ele chegou, perguntou por ela como se não a tivesse visto ainda. Ela tinha fugido dele de novo, fingira que não o viu mas ele tinha certeza que o confessionário não tinha padre nenhum. Podia ter entrado lá, podia ter sentado do outro lado da tela e ter dito tudo o que ali lhe seria permitido. Ali era a casa de deus, naquele confessionário tudo lhe seria perdoado. Mas suas pernas tremiam, suas mãos transpiravam e Pedro resolvera recuar. Lhe faltaram a força, e a coragem.
O jantar seria em algumas horas. Num impulso, Pedro decidiu.
Levantou-se e pegou seu casaco. Passou pela sala e avisou que estaria no hospital, com o Luiz. O Marcos perguntou se queria que fossem todos, mas ele disse que não, que preferia ir sozinho e que assim voltariam todos juntos conforme planejado amanhã.
E saiu.



Capitulo 3



Estou morto há 2 anos.
Vinte e sete meses e uma semana para ser exato. Dizer que estou “morto” é bem estranho, mas é o que é. Estou ligado em respiradores, monitores cardíacos e com várias combinações quimicas sendo bombadas em minhas veias portanto técnicamente falando estou vivo. Mas não tenho nenhum uso espontâneo de meus orgãos que agora respondem aos comandos da mais alta tecnologia. Um espetáculo. Eu nadava, jogava tennis, fazia rapel, cheguei a correr maratona. E agora estou reduzido a isto.
Parece que esta condição de estar não-vivo e não-morto e ainda conseguir enxergar tudo assim com essa clareza é bem rara. Normalmente o processo todo é rápido e nem se percebe. Mas esse apego todoa vida e os sentimentos pelos meus amigos e familia me seguram aqui.
De certa maneira, sem saber já estava morto há muito tempo.
E assim vou nesta vertigem.
Meu corpo não me pertence. Olho-o desta distância sem poder sentir o calor da pele, ou o doce sabor de repouso.
Sempre pensei que a morte fosse doída, assustadora. Mesmo na melhor circunstancia possivel, como um tiro ou uma parada cardiaca eu imaginei que ao menos por um segundo eu percebesse que era a morte me olhando de frente e que um pavor instantâneo tomasse conta de mim. Mas não lembro de nada disso, só lembro de chegar na entrada da serra e de começar a chuva e de repente me ver deitado numa cama de hospital sem sentir nada a não ser uma confusão de sensações e duvidas. O mais engraçado é que nessa confusão toda, não senti nem um pouco de medo. Só uma sensação de tranquilidade, de paz e então, acho que a vida inteira me preocupei com a morte a troco de nada.
Comecei a pautar minha nova situação pelas visitas dos medicos. Nos primeiros dias eles me olhavam com uma mistura de esperança e admiração: “ o Dr. Luiz aqui, tão jovem…” e sabia que eles só passavam a acreditar que era eu ali mesmo, depois de verem com seus proprios olhos. As mãos deles passavam pelo meu rosto, levantavam palpebras e olhavam os sinais vitais procurando descobrir alguma dica que ajudasse a explicar o acidente. Observavam meu rosto procurando nele um elo para o amigo e colega deles, mas o corpo permanecia inerte e não dava dica nenhuma. Os relatórios medicos nada adicionavam.

Com o passar do tempo, a esperança e a tristeza ficaram mais escassas e os pensamentos deles se ocupavam com detalhes mundanos, a mensalidade do carro, o iptu, um amor não correspondido. A enfermeira Marina tinha a mania de abrir meu olho, mas para observar o tom de minha iris. O Dr. Levy vivia obcecado com o trauma dos pacientes da unidade de queimaduras, até o dia em que ele conseguiu se transferir. A Dra. Luiza tentava em vão engravidar mas depois dos quarenta tudo se complicava para ela. Eu passei a me familiarizar com os detalhes de suas vidas enquanto eles se familiarizavam com os detalhes de meu corpo. Eu estava morto. Deixei de ser um caso famoso e passei a um triste amontoado de carne e osso e excrementos sem a capacidade de sentir desejo ou de sonhar. Então eles sentiam tristeza, lamentavam minha jovem vida e ao que ela se resumia, mas acima de tudo lamentavam o fato de eu ter perdido o direito a esperança. Ao mesmo tempo eu lamentava o homem que jamais sentiria a emoção de um gol, o sabor do sexo, o cheiro da primeira chuva, o prazer do sorriso de um filho.
No inicio as visitas de amigos e familiars eram constantes. Com o tempo elas se reduziram a uma ou duas pessoas por dia. Nunca a Manu e o Pedro se cruzavam. Não era de proposito, mas podia ser. Essas visitas eram muito dificeis de aguentar, para mim.
Minha mãe chorava copiosamente, assim que se via sozinha no quarto. Que coisa horrivel, ver um filho assim. Porque a Manu passaria a ser viuva, mas para o que a minha mãe seria, nem existe palavra no dicionario. Ela ficava remoendo as memorias neuroticamente na tentativa de achar porcentagens de amor igualmente divididas. Eu queria dizer a ela que é normal que os sentimentos pelos filhos sejam diferentes, que cada filho tem seu relacionamento com a mãe de acordo com suas fragilidades, queria dizer a ela que me sentia muito amado. Mas ela persistia em se culpar por achar que tinha demonstrado mais amor por ele. E o Pedro ao mesmo tempo achava que tinha roubado mais atenção dela e que eu tinha saido perdendo. E no meio de tudo isso eu ficava ali sem reagir, sem esboçar emoções.
No começo eu me sentia atordoado com tanta informação. Pensava que estava no meio de um sonho, e que os pensamentos de cada um eram obra de minha propria imaginação. E um dia descobri que tinha entrado em uma outra realidade, onde conseguia escutar o que eles pensavam, sentir o que eles sentiam. Culpas, alegrias, indiferenças, paixões e verdades nunca antes imaginadas. Não precisava mais especular, tinha apenas de prestar atenção. Os sentimentos ganhavam cor e forma, sem barreiras, como se eu tivesse acesso uma coneção direta ao cerebro sem passar pela consciencia deles. E comecei a me apegar a esse meu novo mundo e as coisas que agora via, e escutava. Passei a ser um voyeur. Esperava as visitas do Pedro para tentar entender como ele estava e tentar ultrapassar a barreira que ele heroicamente levantara. Procurava entender as nuances e dilemas da Manu, o desespero e impotencia de meu pai.
Mas tenho de confessar que nem tudo foram dificuldades e pesares. Essa nova realidade me trouxe outros grandes beneficios. Sou o primeiro a saber que a Ana e o Mauricio estão apaixonados e que a união dos dois sera questão de tempo. A Dra. Luiza não sabe ainda que está grávida de uma menina gerada com paixão e não com inseminação artificial. O meu sobrinho Lucas conta a todos que eu escuto o que ele me diz, mas é obvio que ninguem acredita num garoto de 3 anos.

Em algumas vezes foi tão dificil que eu pensei que meu rosto me entregasse, mas é obvio que não. Nenhuma emoção transpareceu e aquele rosto vazio e sem expressão continuou igualzinho ao que chegou ao quarto numero 117 vinte e cinco meses atras.

Um dia logo cedo o Pedro chegou enquanto a Manu me dava banho. Normalmente ninguem visitava a essa hora, mas a enfermeira disse que a Dra. Manu tinha liberado a entrada do irmão.
Manu sempre se sentiu mais confortavel sendo util e pratica e assim que percebeu o desconforto do Pedro por estarem sós, colocou-lhe nas mãos uma bacia de agua morna com sais e uma esponja marinha.
Os dois foram passando as esponjas humedecidas na minha pele, limpando cada dedo e orificio massageando musculos quase flácidos. Trabalhavam movidos por uma coreografia tão precisa que quando a Manu levantou a toalha na minha cintura para limpar penis e escroto o Pedro já tinha se ocupado com as dobras de minha orelha direita. Manu pegou um tubo de loção hidratante , esguichou um pouco na mão do Pedro mas exagerou e ele pegou o pulso dela para transferir um pouco para as mãos dela. Eles diligentemente espalharam loção na minha pele ressecada, evitando que os dedos se cruzassem ou mesmo se aproximassem. Mas quando a mão de Manu terminou de passar pelo meu ventre, a de Pedro acabava de atravessar o meu peito e elas se econtraram e ficaram paradas com milimetros de distância. Por uns minutos as mãos ficaram paradas e as expressões vazias, mas seus corações batiam em ritmo acelerado. Os corações sincronizados e as ideias a mil até que um telefone tocou quebrando o momento e o Pedro foi atender. A Manu correu para o lavabo, lavou as mãos e se olhou no espelho. Prestou atenção para ter certeza que ele ainda estava conversando. Quando voltou ao quarto, deu um tchau rápido ao Pedro e saiu.
Pedro desligou o telefone e foi até a porta para ver se a Manu estava perto, mas voltou depois para se sentar ao lado de minha cama acariciando meu rosto como quando eramos criancas e ele esperava eu dormir para ficar me olhando e eu fingia dormir para tentar entender o que ele fazia. Ele pensava "os dois tão iguais e tão diferentes. Como foi que nos dividimos? Como seria se em vez de dois tivessemos nascido como um só?"

A cada vez que o pensamento o levava de volta a momentos antes com a Manu ele a desviava da ideia e ficava buscando lembranças de nossa infancia mas seu coração disparado denunciava tudo o que eu percebi. Confirmava tudo o que eu sempre soube.
Ficou ali um pouco e depois me deixou só.

Desde que aqui cheguei não lembro de sentir essa tontura.
Pedro e Manuela se amavam. Se amam. Estão apaixonados. Precisam ficar juntos mas não podem porque entre os dois esteve meu corpo todo esse tempo.
Fiquei atordoado e perdi a consciencia. Isso deve ter durado um tempo porque quando voltei, já era noite. Não sei para onde fui nem o que lá encontrei, mas agora estou certo de uma coisa: preciso voltar. O que me segura aqui? A vontade estonteante de sentir seus sentimentos? A necessidade de ver os dois juntos mais uma vez se amando e saber que em mim eles podem se completar?

E então fico, esperando o dia em que voltem juntos.

Final em breve (work in progress)