Girl From Sao Paulo

"you are crossing the tropic of capricorn".

31 May 2009

PIAUI

O texto que segue foi escrito para um concurso literário promovido pela revista Piaui, que eu muito admiro. Finalmente uma revista que me ajudou a matar saudade da The New Yorker.
Pois bem, eles promovem esse concurso, a unica regra sendo que deve partir ou ser inspirada por uma frase.
O texto foi publicado na versão online da revista e senti orgulho de o ler.



O convite dizia 19hs., mas eu tinha combinado de encontrar uma amiga as 20hs. na frente da Pinacoteca.
A segunda vez que passei pela frente vi que não tinha onde deixar o carro e fui para o estacionamento da Sala São Paulo.
Ajeitei o laptop em baixo do banco, chequei o baton e sai para o Largo General Osório. Comecei a caminhar sentido Estação da Luz, mas logo que passei ao lado do Dops, vi um movimento de pessoas pelo canto do olho e no trajeto o meu olhar cruzou com o olhar embaciado de um mendigo. O coração disparou assim que eu percebi a decisão que havia tomado – sozinha de noite no coração da cracolandia, rodeada por viciados e mendigos. Olhei ao redor e vi que alem dos mendigos e viciados, não havia mais ninguem como eu. Como já estava quase passando o Dops, achei melhor ir em frente.
Ao longo da rua viam-se restos de lixo, pessoas dormindo em papelões e muitos fumando ao abrigo das ombreiras das portas. O sentimento maior que eu tinha era de pena, mas ele cada vez mais dava lugar ao medo então apressei o passo. O coração retumbava tão alto no peito que eu tinha certeza que todos na Rua Mauá o escutavam.
Perto da Couto de Magalhães, percebi que o mendigo cabeludo que eu vira lá atras me olhava. “Não acredito” pensei, “vou ser assaltada, não tenho pra onde fugir”. Como é que aquele cara chegou ali tão rápido? Será possivel, ou estou imaginando coisas?
Ele me olhava e eu esperei os carros passarem, mas em vez de ir em frente atravessei de vies como o zagueiro que finge chutar penalty para um lado, mas envia a bola no lado oposto.
Corri e do outro lado da rua olhei para tras. Lá estava ele me olhando. De repente, esbarrei com alguem e cai em uma pilha de lixo. Olhei e vi um moleque de pé, me apontando uma arma pequena e preta. O unico outro ser humano que eu via era o mendigo. O tornozelo doía, e o moleque repetia “passa a a bolsa” e eu continuei parada sem saber se levava o garoto a sério e sem achar que o meu pé ia aguentar correr.
Ao meu lado de repente uma mão se esticou e olhei para cima. Era o meu mendigo cabeludo. Com firmeza me segurou a mão, e me apoiou para levantar enquanto dizia ao moleque algo que o fez desistir.
Me amparei no braço dele e fomos caminhando aos poucos lado a lado.
Queria dizer alguma coisa mas, o que? Tudo que eu dissesse seria menor do que o gesto dele.
Em silencio, atravessamos a estação da Luz e saimos pela porta em frente ao Parque da Luz. Atravessei a rua para o lado da minha tribo, mancando um pouco e já com vontade de chorar, menos pela dor do que pela força do momento.
Abri a bolsa para procurar o convite, e em cima dele vi um livreto pequeno. Virei para procurar o mendigo, mas ele já tinha sumido.
Tirei o livreto da bolsa. Era um caderno de anotações com papel surrado, velho, de folhas gastas e amareladas. Folheei-o e vi que todo o espaço branco tinha sido coberto por uma mesma frase - umas vezes com letra cuidadosa, outras rabiscada, em outras ainda o lapis quase furou a pagina. Mas sempre a mesma frase:
“Este livro pertence aos homens mais raros. Talvez nenhum deles sequer esteja vivo”