Girl From Sao Paulo

"you are crossing the tropic of capricorn".

01 August 2008

batatas ou tuberas?

Andei com vontade de ir a aldeia alentejana onde passava ferias quando meus avós eram vivos. Mas não fui. Faltou-me coragem.
Meus pais mandavam-me com quem estivesse a caminho ou faziam a viajem para me entregar as mãos de minha avó. Lá eu ficava com meus primos solta pelos campos, a explorar tudo que a curiosidade me ditava, trocando as experiencias e o sotaque de alfacinha (lisboeta) pelas tardes a correr pelas searas de trigo a procura de papoilas. Acordava com o sol e partia rumo ao moinho para ver o lagar de azeite a funcionar. Ou rumo a horta para colher tomates maduros ou até a ribeira onde colhia agrião e nadava com meus primos. Lembro de muitas tardes passadas nos "tapetes" que era um lugar onde muitas mulheres se reuniam para fazer tapetes de arraiolos de empreitada. Tinha uma prima que trabalhava lá durante o verão e elas deixavam-me fazer uns pontinhos para aprender. Até hoje sei fazer o ponto de arraiolos.
Tenho de lá muitas memorias, das comidas, dos cheiros e das cores vivas e contrastantes das paredes brancas caiadas contra o ceu azul turquesa totalmente isento de nuvens. Não me lembro da melancholia de que fala minha mãe, do isolamento que a região sofreu e nem tampouco das dificuldades que eles viveram, pois eu era viajante e tirava de lá somente os prazeres de férias. Contam-me que na época da segunda guerra, tudo que a terra produzia era levado, e o povo aprendeu a viver com o pouco que sobrava.
Dizia Salazar aos portugueses “salvo-vos da guerra, mas não vos salvo da fome” e para isso criou o “manifesto” que obrigava mais de 90% de tudo que a terra produzia a ser entregue para o governo e para a alemanha por tabela.

Falo do cheiro do Alentejo com minha prima, um cheiro que eu guardo na lembrança mas que não sei descrever por ser composto por varios. As vezes senti fragmentos desse cheiro em alguns lugares, mas nunca por completo a não ser lá. A flor de laranjeira, os coentros, os poejos, as baldroegas, as meloas maduras, a folha da azinheira, o queimar dos troncos de eucalipto no fogão a lenha e o cozido de Borrego, tudo isso me lembra de lá.
E de repente minha prima acha o ingrediente que faltava.
Tuberas.
“Lembras? A avó dizia: batatas ou tuberas? E a gente respondia tuberas”
Claro que lembro. A memória vem de repente, mas vivida.
Sempre tuberas.
O meu tio achava-as na terra, e elas eram armazenadas na dispensa, ao lado de batatas, cebolas, alhos, e enfusas de azeite e azeitonas a curar. Apareciam de abril a maio, escondidas na terra, e só as achava quem com ela tinha intimidade. Os meus tios sabiam olhar o chão cheio de flores de esteva e desmascarar as tuberas em um piscar de olhos. E assim descubro que aquilo que a gente trocava por batatas são trufas brancas. Aquelas que são achadas por javalis e cães treinados na frança e italia. E de repente lembro: do guisado de carne com tuberas, das omeletes de tuberas, das tuberas com aspargos, de tuberas ao fricassee…..
Talvez por terem esse nome não foram descobertas pelos gourmands e nem feitas famosas. Mas com certeza são parte do cheiro do meu Alentejo.
O cheio a tuberas.

Dizem-me que agora na aldeia não há mais lavoura nem tradições, e nem crianças (a escola primária local tem 4 alunos). Lá sobraram só os velhos e alguns jovens viciados em droga. O trigo é colhido pela ceifeira, em vez de pelas filas de homens e mulheres a cantar em coro. O feno é amarrado em rolos uniformes e perfeitos por uma máquina cuja precisão a mão do homem não copia. As azeitonas são vendidas a granel, e não mais amassadas pelas pedras do moinho de agua no lagar de azeite. E o vinho não é mais amassado pelos pés de donzelas a meio de histórias e gargalhadas, e sim levadas as uvas para a cooperativa na cidade mais próxima onde se juntam a tantas outras.

E que direito tenho eu de criticar a evolução? A modernidade serve a todos nós, e tem me servido tambem, que aprendi a escrever com uma ponta de pena e hoje escrevo aqui neste lugar que não usa papel e nem palpavel é. A memoria da aldeia vai me servir sempre como porto seguro, com seus cheiros e histórias até o dia em que precisar lá ir.

Até um dia em abril ou maio, em frente a um prato de tuberas guisadas com codornas.

E viva a modernidade.